Parto normal ou cesariana? A pergunta, que até há algum tempo podia ser simplesmente um debate familiar sobre a chegada de um bebê, se tornou para alguns setores da sociedade e até para políticos uma expressão de diferenças ideológicas entre liberais e conservadores.
No período eleitoral de 2018, sites de cada um destes espectros associaram a discussão sobre as vias de parto a orientações políticas e até a candidatos.
Na véspera do 2º turno da eleição presidencial, um texto publicado no portal Jornalistas Livres dizia: “Bolsonaro coloca em risco parto humanizado no Brasil”. O portal, que se define como uma “mídia alternativa em defesa da Democracia, da Cultura, dos Direitos Humanos e das Conquistas Sociais”, inclui em seu conteúdo tags como “#LulaLivre” (em referência ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba após condenação em segunda instância) e matérias favoráveis a líderes de esquerda, como “Posse de Nicolás Maduro recebe apoio em todo o mundo”.
Assinado por Maíra Libertad, enfermeira obstétrica do Coletivo de Parteiras, a postagem de 17 de outubro denunciava o risco de retrocesso, com a eleição de Bolsonaro, de políticas de governos petistas em prol da ampliação dos partos normais e redução no número de cesáreas.
Mas o texto de Libertad logo foi classificado uma semana depois como “fake news” por um outro portal, o Estudos Nacionais — este marcado por repetidos artigos contra o aborto e títulos como “É Jair, ou já era!” (fazendo referência ao presidente Jair Bolsonaro), “A verdadeira educação está fora das universidades brasileiras” e “Entidades de controle populacional mundial continuam investindo no Brasil”.
A postagem do Estudos Nacionais criticou o fato do nome de Bolsonaro ter sido citado no texto de Libertad sem que o candidato tivesse alguma vez se manifestado sobre o debate relativo às vias de parto: “Tratou-se de uma afirmação baseada em meras suposições”. Ainda segundo o portal, a publicação da enfermeira seria uma expressão de que “a defesa do parto humanizado é vista pela esquerda como parte de suas pautas”.
Este é apenas um dos textos publicado no Estudos Nacionais em que a defesa do parto humanizado é associado à esquerda.
A chamada humanização da gestação indica a busca por procedimentos, do pré-natal ao parto, que não sejam desrespeitosos e excessivamente artificiais para grávida, bebê e família. Com estas premissas, tanto partos normais quando cesarianas podem ser “humanizados”.
Mas essa tendência frequentemente vai ao encontro do clamor por alternativas à cesariana – uma cirurgia. Alguns grupos de ativistas e pesquisadores também reivindicam que o nascimento possa ser feito em outros lugares que não os hospitais, como a própria casa das famílias, e com a participação de outros profissionais da saúde que não necessariamente sejam médicos.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), cesarianas podem salvar vidas de mulheres e bebês — mas apenas quando tecnicamente necessárias, como no caso de trabalho de parto prolongado, sofrimento fetal ou quando o bebê está numa posição anormal.
Representante de nova chapa do Cremerj diz que diretoria é ‘conservadora’
Em entrevista à BBC News Brasil, Libertad disse ter escrito que “Bolsonaro coloca em risco parto humanizado no Brasil” como diagnóstico de um contexto.
“No programa de governo do Bolsonaro, havia pouco material sobre a saúde e nenhuma menção à questão do parto. Não tínhamos certeza de que haveria retrocesso, mas tudo indicava que sim”, diz.
A enfermeira obstetra justifica essa percepção citando a aproximação da família Bolsonaro de nomes da área médica que têm defendido abertamente a limitação do aborto e criticado os movimentos pela humanização do parto.
É o caso do ginecologista Raphael Câmara, coordenador do Grupo de Trabalho Materno Infantil do Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio). Ele esteve sob os holofotes em agosto, quando se colocou contrário à legalização do aborto em uma audiência pública no STF (Supremo Tribunal Federal), e já publicou diversos artigos questionando a defesa da redução de cesáreas.
Sua chapa no Cremerj também esteve representada em uma foto, publicada na coluna de Ancelmo Gois, do jornal O Globo, em que Flávio Bolsonaro (senador eleito pelo PSL e filho de Jair Bolsonaro) aparece ao lado de dois membros da nova diretoria fazendo o sinal de armas – marca da família Bolsonaro. A imagem, ambientada na cerimônia de posse da chapa, veio à tona em outubro.
Câmara disse não ter ido à cerimônia, mas afirmou à BBC News Brasil por telefone que a nova diretoria “foi eleita assumidamente com uma pauta mais conservadora”.
“A maioria das pessoas é de direita. Então, ideologicamente, estamos mais para o lado do Bolsonaro”, afirma o ginecologista, acrescentando ter votado e feito campanha por Bolsonaro.
Congresso internacional é alvo de nota de conselho
Câmara, em nome da nova diretoria, assinou por sua vez uma nota de repúdio ao conteúdo de palestras do 22º Congresso Mundial da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo). O congresso, o maior a nível internacional para esta especialidade, foi sediado no Rio em outubro.
Parte da programação, referente ao aborto e às vias de parto, foi acusada de parcialidade. “[O Cremerj repudia o congresso] por não dar um único espaço ao contraditório, defendendo a manutenção da legislação atual sobre o aborto (…) deixando claro que o congresso tomou posição ideológica num tema que deveria ser técnico”, diz a nota do conselho.
O texto também defende o “parto humanizado em hospital com médico” e clama pelo “bem-estar materno-fetal sem demonizar o obstetra”.
Em entrevista à BBC News Brasil, Câmara disse que a manifestação foi motivada por “centenas” de denúncias coletadas pela entidade.
“O que aconteceu foi que eles (a organização do congresso) escolhiam as maiores salas para falar do aborto”, disse Câmara, coordenador do Grupo de Trabalho Materno Infantil do conselho. “Deve-se debater o aborto, mas os dois lados deveriam ter direito a voz”.
Ele também aponta para a conexão entre as reivindicações pela humanização do parto e pelo aborto.
“Quem defende uma coisa, defende outra. Tanto que, no mundo do parto humanizado, aquelas pouquíssimas pessoas contrárias ao aborto são demonizadas”, disse Câmara por telefone, citando o nome de uma colega que deixaria de receber potenciais pacientes por, sendo contrária ao aborto, ser boicotada em grupos de grávidas e mães nas redes sociais.
A programação do congresso da Figo incluía palestras classificadas no site do evento em temas como “obstetrícia clínica”, “saúde sexual e direitos humanos”, “oncologia ginecológica” e “saúde fetal pré-natal”. O conteúdo foi definido por uma comissão científica formada por 13 especialistas de 12 países diferentes – um deles do Brasil, Marcos Felipe Silva de Sá, diretor científico na Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), entidade que mediou a nível local a produção do evento.
Parte da programação dedicou-se a abordar técnicas e debates sobre políticas referentes ao aborto. Havia palestras e oficinas com títulos como “Como o estigma do aborto impacta a todos nós” e “Aborto seguro: recomendações da OMS em abortos médicos”.
Também membro da Febrasgo, onde é diretor de Defesa e Valorização Profissional, Juvenal Barreto diz que não percebeu anormalidades ou conflitos no decorrer do congresso internacional.
Titular da diretoria da entidade, Barreto explica que a presença de palestras relativas ao aborto atende a demandas dos participantes, oriundos de vários países e com interesses técnicos.
“Um congresso internacional trata de assuntos dos mais diversos. O aborto é proibido no Brasil, mas liberado em outros países do mundo. Fala-se em um contexto mundial. Os participantes não vieram para o Brasil para discutir zika na gravidez, por exemplo”, afirmou por telefone à BBC News Brasil.
Segundo o representante da Febrasgo, a entidade, como representante local, não tem participação alguma na decisão de quem e quais assuntos serão apresentados. Ele também refuta a acusação de desequilíbrio na visibilidade dada ao tema do aborto.
“O tamanho das salas foi definido apenas por contingências operacionais. Não havia nenhuma intenção de ‘doutrinar’, como foi interpretado”, diz.
Sites conservadores monitoraram programação do congresso
Os fatos de haver participantes do mundo todo e de o congresso não tratar exclusivamente de temas brasileiros, no entanto, não impediu que sites e entidades contrárias ao aborto tomassem o evento como uma afronta. Ainda antes do congresso, que ocorreu entre 14 e 19 de outubro no centro de convenções RioCentro, o congresso da FIGO foi acompanhado de perto por sites conservadores, como o Estudos Nacionais, que vincularam interesses pró-aborto à discussão sobre a humanização do parto.
Um texto de 19 de outubro sobre o congresso, publicado no Estudos Nacionais, afirma, sem dar detalhes, que uma “tendência e reivindicação do parto humanizado tem sido incluída dentro da narrativa de ONGs que tradicionalmente lutam pela legalização do aborto”.
No mesmo portal, um outro texto daquele mês afirmou que um fator que une as duas pautas é o “conceito da autonomia e empoderamento feminino”.
Um outro site que analisou e criticou a programação do congresso da Figo foi o Aleteia, portal internacional patrocinado por fundações católicas e disponível em oito idiomas. Apenas a página no Facebook do site em português tem mais de 700 mil curtidas. O site traz como mote a frase “Vida plena com valor — Estilo de vida, plenitude e valores que permanecem” e seções como “histórias inspiradoras”, “espiritualidade” e “viagem e cultura”.
Um texto no site detalha e classifica as atividades do congresso como sendo uma orientação para “matar bebês” e denuncia interesses de ONGs, fundações e clínicas de abortos no evento.
Janaina Paschoal: ‘Obstinação pelo parto normal’
A nota da Cremerj foi, por sua vez, catapultada nas redes sociais pela deputada estadual eleita em São Paulo Janaina Paschoal (PSL). O posicionamento, publicado em 18 de outubro, foi multiplicado por Paschoal, no Twitter e no Facebook. Ela citou o que seria um “viés ideológico no Congresso da Figo”: “Ciência pressupõe diálogo, não monólogo!”
Escrevendo à BBC News Brasil por WhatsApp, a deputada estadual eleita por São Paulo afirmou que não é “contrária a nenhum tipo de parto” e que toda mulher deve escolher pela melhor opção, “sendo certo que o olhar médico não pode ser desprezado”.
“O que me importa é preservar a vida e a saúde de mãe e bebê. Insistir num parto normal, quando o quadro indica ser inviável, não é inteligente. Em uma audiência, eu ouvi uma médica testemunhar que o parto normal tem preferência, pois os alunos precisam aprender. O que é isso? As parturientes são cobaias?”, questionou.
Em agosto, Paschoal escreveu no Twitter que reivindicações pelo parto humanizado teriam enveredado para uma “obstinação pelo parto normal”, motivada pelo “mantra da epidemia de cesárea”.
Perguntada sobre casos ou dados de mulheres que teriam sido prejudicadas por tal “obstinação”, Paschoal afirmou que teve como base relatos aos quais teve acesso como advogada e durante a campanha, e também em conversas com o doutor Raphael Câmara.
Segundo o médico, ele e Paschoal se aproximaram em uma audiência pública no STF sobre a interrupção da gravidez, em agosto.
“O nosso grupo, contra o aborto, era bem menor. Então, acabamos ficamos bem próximos. O Magno Malta (senador não reeleito pelo Partido da República, próximo a Bolsonaro) também estava lá”, explicou.
Debate sobre taxa de cesarianas no Brasil
Câmara é autor de diversos artigos publicados na internet e em jornais onde questiona a validade científica, o financiamento e o “conflito de interesse ideológico” que permeia debates sobre abortos e cesáreas.
Ele põe sob suspeita, por exemplo, dados do número de abortos ilegais no Brasil. Os dados oficiais que existem são de abortos legais — segundo o Ministério da Saúde, em 2016 e 2017 eles foram da ordem anual de 1,6 mil.
Já sobre abortos clandestinos, por motivos óbvios — afinal, a interrupção da gravidez, com algumas exceções, é considerada crime —, não há dados consolidados. Câmara questiona a validade científica de dados levantados por estudos e ONGs que falam em centenas de milhares de abortos ilegais no país.
Ele também põe em dúvida os benefícios do parto normal e as metas internacionais para redução de cesarianas, apesar das orientações da Organização Mundial da Saúde.
Em 2015, a OMS publicou um posicionamento sobre tais metas, afirmando que, embora a comunidade acadêmica internacional tenha considerado nas últimas décadas a taxa ideal de cesáreas na faixa entre 10% e 15% dos partos, particularidades locais e questões metodológicas tornam difícil a definição de uma meta unificada.
Mas, naquele mesmo ano, a organização apontou no Brasil uma “verdadeira cultura da cesariana”, sendo o país um dos expoentes no mundo da “epidemia de cesarianas”. Dados do Ministério da Saúde mostram que, naquele ano, 55,5% dos partos feitos no país foram cesáreas e 44,5% partos normais.
Um estudo publicado no periódico The Lancet estimou que, em 2015, o percentual mundial de partos por cesárea foi bem menor que no Brasil: uma média de 21%.
A OMS coloca-se claramente pela necessidade de redução das cesáreas, afirmando que este procedimento “pode causar complicações significativas e às vezes permanentes, assim como sequelas ou morte” em mães e bebês.
Diz um documento de 2015 da instituição: “Os esforços devem se concentrar em garantir que cesáreas sejam feitas nos casos em que são necessárias, em vez de buscar atingir uma taxa específica de cesáreas”.
‘Não é sobre esquerda e direita, mas sobre direitos’
Presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras na Paraíba (Abenfo-PB), Waglânia Freitas diz que movimentos que lutam pela redução no número de cesáreas não anulam a importância deste tipo de parto e nem o desejo da parturiente.
Um congresso organizado pela Abenfo-PB foi citado no texto “Problemas e interesses do movimento pelo parto humanizado”, publicado no Estudos Nacionais, como um exemplo de uma “excessiva autonomia da mulher” que seria prejudicial ao bebê — nas entrelinhas, no caso de um aborto.
Segundo o portal, o principal tema do encontro na Paraíba teria sido a interrupção da gestação, ao lado da pauta do parto humanizado.
Para Freitas, entretanto, apontar estes como temas prioritários é uma maneira “descontextualizada” de falar do evento organizado pela Abenfo-PB, que também versou sobre outros assuntos.
“O movimento pela humanização do parto reconhece a importância da cesárea. Agradecemos a existência dessa tecnologia, ela salva vidas – quando indicada. Mas quando não é bem utilizada, ela põe em risco mães e bebês, matando ou deixando sequelas”, disse Freitas à BBC News Brasil por telefone. “Defendo que a mulher tenha direito ao seu corpo, à cesárea no horário que ela quiser. Mas ela precisa ter conhecimento sobre os riscos. Não entendo que seja algo ideológico, de esquerda ou de direita. É de direitos”.
A professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) diz que não viu situações atípicas no decorrer do evento, mas que percebe um aumento de ataques nas redes sociais contra a pauta da humanização do parto.
“Não podemos sair do contexto em que estamos. Temos uma polarização na qual existe uma linha política que nega e alija direitos; e outra que defende direitos conquistados historicamente”, diz Freitas, que diz defender pessoalmente as conquistas dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e a saída do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da prisão.
Disputa entre categorias
Para além de interpretações sobre dados e políticas públicas que versam sobre o tema, outro assunto divisivo é o papel de diferentes categorias profissionais na gravidez e no parto.
Um post do Estudos Nacionais classifica o congresso da Figo como tendo um viés “antimédico”, parte de um contexto mais amplo que poderia desembocar em “uma definitiva luta de classes entre médico x paciente, médico x doula, médico x marido” durante a gravidez.
A nota do Cremerj menciona um contexto de “demonização” dos obstetras no evento.
À BBC News Brasil, Câmara disse que os obstetras são a “especialidade mais agredida” entre os médicos. Quando perguntado pela reportagem se há dados que comprovem isto, o ginecologista afirmou que isto ainda teria que ser levantado pelo conselho, mas que sua percepção se origina em casos que chegam à entidade.
“Não é violência obstétrica, mas violência contra o obstetra. Você acha que não tem obstetra safado? Claro que tem, como tem jornalista. Mas o termo ‘violência obstétrica’ nos impede de fazer qualquer coisa”, disse o ginecologista e diretor no Cremerj. “As enfermeiras e doulas querem este filão.”
O termo “violência obstétrica” tem sido usado por instituições como o Ministério da Saúde e a Fiocruz para designar práticas que desrespeitam a mulher durante a gravidez ou o parto. Ele se caracteriza, por exemplo, em situações como o uso desenfreado da ocitocina sintética para acelerar o parto vaginal, o que pode aumentar o risco de hemorragia; levar o bebê para longe da mãe após o nascimento; ou não deixar a parturiente comer ou beber, ou ainda ameaçá-la ou fazê-la alvo de chacotas.
Embora não cite diretamente o termo “violência obstétrica”, uma declaração da OMS de 2014 afirma que “no mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde”, o que configura um “quadro perturbador”.
Já neste ano, a organização publicou uma série de recomendações em relação ao parto. O documento afirma que a maioria dos nascimentos ocorre em situações em que não há fatores de risco para a mãe e o bebê, mas, no entanto, há uma “medicalização crescente dos processos de parto”.
“Isto tende a enfraquecer a capacidade da mulher de dar à luz e afeta de maneira negativa a sua experiência de parto. Ademais, o maior uso de intervenções no trabalho de parto sem indicações claras continua a ampliar a lacuna de saúde na equidade entre ambientes ricos e pobres em recursos”, diz o documento.
A organização tem por anos encorajado a participação de outros profissionais da saúde, como enfermeiras e parteiras, na gravidez — do pré-natal ao parto.
Para Waglânia Freitas, os temores corporativos da categoria médica não se sustentam diante de uma diminuição no volume de cesáreas. Para ela, o lugar dos médicos continua garantido neste cenário.
“Há um medo da categoria médica de perder espaço, mas eles têm um espaço garantido…. Qual é o espaço? É o da intervenção, da assistência àquele grupo de mulheres que estão na iminência de morrer ou adoecer”, diz.
Fonte: G1