Como (e quando) partos passaram a ser feitos por médicos

Entre os anos 1980 e as primeiras décadas dos 2000, quase todos os partos no Brasil foram feitos em hospitais. Em 2017, segundo o IBGE, apenas 0,6% do total de nascidos vivos no Brasil nasceram no domicílio.

Nascer no hospital, no Brasil e no mundo, nem sempre foi a regra.

Além disso, embora esses dados tratem da segunda metade do século 20, a transição entre nascer em casa – normalmente pelas mãos de uma parteira – e no hospital – normalmente pelas mãos de médicos –, remonta pelo menos ao século 19.

O Nexo conversou com Anayansi Correa Brenes, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e autora do livro “Parteiras: Escola de Mulheres” e consultou estudos sobre o tema, e resume abaixo, em alguns pontos, como essa transição aconteceu, no mundo e no Brasil.

O parto era “coisa de mulheres”

Segundo Brenes, o parto era tradicionalmente feito por mulheres – normalmente por aquela que, na comunidade, tivesse tido ela própria um grande número de partos bem-sucedidos, sem complicações, julgada apta para realizar o parto das outras.

Essas mulheres eram conhecidas como comadres ou parteiras, e a princípio realizavam esse trabalho de maneira voluntária.

Portanto, até o surgimento da medicina moderna, no século 19, as mulheres pariam seus filhos em casa, sendo assistidas por outras mulheres.

No livro “Ao Sul do Corpo”, publicado em 1993, a historiadora Mary del Priore relata que, também no Brasil colonial, o parto era um evento de mulheres. Quando havia dificuldades, no entanto, ele passava a contar com a participação da vizinhança, tornando-se um evento coletivo.

Segundo del Priore, as mulheres se valiam de rezas, benzimentos, de instrumentos do mundo doméstico, como a bacia e a tesoura, para cortar o cordão umbilical, a garrafa de cachaça para limpar a tesoura, azeite, óleo ou banha para as massagens. Circunscrito ao âmbito domiciliar e culturalmente  imerso em tradições, rituais e crenças, todo o processo do parto e do nascimento era atendido pela parteira.

Parteiras de ofício

Com o passar dos séculos, a atuação das parteiras se tornou um ofício e passou a receber remuneração.

Foram criados cursos, ministrados pelos barbeiros-cirurgiões, que as capacitavam para fazer intervenções cirúrgicas caso o parto se complicasse.

No século 18, surge a que é considerada por historiadores como a primeira professora de obstetrícia da história: a francesa Angélique du Coudray (1712-1794), conhecida como Madame du Coudray.

Ela trabalhou na corte do rei francês Luís 15 que, em 1759, lançou uma iniciativa de combate à mortalidade infantil. Du Coudray foi designada a ensinar o ofício de parteira a mulheres de toda a França. Viajou pelo interior do país de 1760 a 1783 e estima-se que tenha treinado cerca de 10 mil mulheres.

Ela também criou o primeiro manequim obstétrico em tamanho real,  uma tecnologia de ensino que foi registrada e vendida ao mundo inteiro   – chegando inclusive ao Rio de Janeiro, segundo Anayansi Brenes. A boneca de pano permitia às parteiras aprendizes praticarem e aprenderem sobre anatomia.

Brenes aponta que a preocupação demográfica do rei francês marca, na história, a “entrada” do Estado no âmbito do parto.

No século 19, parteiras formadas começaram a atuar no Rio de Janeiro.  Conhecida como a primeira parteira graduada da então capital, Madame Durocher (1809-1893), se formou no curso de parteira da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1834 e se tornou a primeira mulher a integrar a Academia Nacional de Medicina.

A regulamentação das profissões

Na passagem do século 18 para o 19, a regulamentação das profissões abalou as práticas tradicionais, como a das parteiras.

“Não foi só a comadre: os herboristas foram substituídos pelos farmaceutas, e várias profissões tradicionais – que eram mais arte do que profissão – foram abaladas naquele momento, [que iniciou] um certo controle do Estado sobre as profissões”, diz Anayansi Brenes.

Nesse momento, aproximam-se as funções de cirurgião e médico, que antes tinham papéis distintos.

Os cirurgiões, que eram homens, passaram a se interessar nessa época pela atividade do parto. Com a atuação deles, configura-se uma disputa entre as duas classes, conflito que teria reverberações imediatas no Rio de Janeiro. A disputa entre médicos e parteiras ou obstetrizes perdura, como guerra cultural, até os dias de hoje.

Surgiam, no século 19, especialidades médicas voltadas à mulher e suas funções reprodutivas, como a ginecologia e a obstetrícia.

“A história feminista do parto e da maternidade retirou de cena a oposição ideológica entre saber e superstição, para colocá-la no campo das disputas profissionais e da constituição de novos saberes sobre o corpo feminino que tiveram lugar a partir do século 18. Dessa forma, mostrou como a entrada dos médicos na cena do parto foi muito mais o resultado de uma relação de forças do que simplesmente a superação do obscurantismo pelo progresso do conhecimento médico”

Ana Paula Vosne Martins

Historiadora, no artigo ‘A Ciência Obstétrica’, de 2004

Segundo Anayansi Brenes, foi a intervenção do Estado, tanto no caso da França quanto do Brasil, que consolidou a atuação dos médicos como a mais adequada na realização do parto.

“Era uma disputa entre profissionais, depois virou uma disputa de mercado, e o Estado, entrando na briga, acabou dando ganho de causa aos homens parteiros e à medicina, por ser [na época] uma categoria de maioria masculina, articulada com a política e com o poder”, disse Brenes ao Nexo.

Medicalização

O domínio moderno da medicina sobre o parto levou o procedimento para dentro de clínicas e hospitais, modificando suas práticas tradicionais e sua concepção natural. “Foi uma ruptura que isolou o parto no ambiente hospitalar e depois o transformou em doença, medicalizou”, afirma Brenes.

Mas a medicina também trouxe conquistas importantes, que ajudaram a reduzir a mortalidade materna, como o aprimoramento de intervenções cirúrgicas capazes de salvar vidas, a descoberta da causa da febre puerperal e o uso da anestesia.

Ainda no século 17, a família francesa Chamberlain disseminou o uso do fórceps no parto normal, instrumento que foi posteriormente aprimorado e contribuiu para a atuação médica no parto, além de evitar mortes de mães e bebês.

A cesariana, antes realizada apenas após a morte de uma mulher durante o parto, passou de um recurso importante – que justificou a participação dos cirurgiões – para a norma, se sobrepondo ao parto natural.

Fonte: Nexo