Por que a sexualidade da mulher é tratada como questão de saúde?
A rotina é conhecida de muitas mulheres: após a perda da virgindade, inicia-se o ritual anual da visita à ginecologista. Pouca conversa e exames invasivos, muitas vezes marcados por dor, passam a ser considerados naturais, uma parte essencial de garantir não só a saúde, mas também o bem estar sexual. No entanto, um novo movimento de ginecologia tem questionado esse padrão que coloca o espéculo e a maca como parte essencial da sexualidade da mulher.
Antes de conhecer essa nova ginecologia, é preciso porém, olhar para trás para entender porque a sexualidade é tratada da forma como a conhecemos. É preciso olhar bem para trás, para o que seria o “início” da humanidade. Tanto na Bíblia, com a figura de Eva, como na Mitologia, com a figura de Afrodite, o corpo da mulher e sua sexualidade, respectivamente, teriam sido criadas a partir do pedaço do corpo de um homem: a primeira veio da costela de um; a segunda, do pênis castrado de um deus. A ideia de que o corpo da mulher seria uma extensão do masculino se perpetuou por muito tempo em várias áreas do saber: os ovários eram conhecidos como “testículos femininos” até o século VXII.
Desde a Grécia Antiga até o final do século XIX, por exemplo, acreditava-se que a histeria, um tipo de neurose, era uma “doença” exclusiva das mulheres. A própria origem da palavra demonstra uma falta de conhecimento, por séculos, do corpo da mulher: histeria vem do grego, “hystéra”, que significa útero.
O psicólogo francês Pierre Janet (1859-1947) e, posteriormente, Sigmund Freud (1856-1939), foram os primeiros profissionais a associar a histeria a causas psicológicas e não físicas, provando que a neurose pode acometer qualquer pessoa independente do sexo. Mas até o século XX, a histeria das mulheres era tratada com cirurgias – em algumas havia a retirada do útero –, remédios e, nos casos mais leves, com uma massagem clitoriana feita pelos médicos, que levavam as “enfermas” a um estado chamado de “paroxismo histérico”. O orgasmo feminino ainda era desconhecido e a tal massagem nas histéricas nada mais era do que a masturbação feminina, ato que pode e deve ser feito pelas próprias mulheres.
Do tratamento equivocado da histeria até hoje, muitos outros mitos sobre a sexualidade e o corpo da mulher continuam sendo disseminados. E neste contexto de tabus e desinformação, o prazer feminino se torna um assunto problemático que, com frequência, vai parar apenas no consultório médico – e raramente em outros espaços. Ao mesmo tempo em que isso pode ser problemático, historicamente, essa relação entre saúde e sexualidade foi muito importante para lidar com alguns dos mitos existentes.
Disseminar mitos sobre a sexualidade feminina e fazer com que mulheres não tenham conhecimento do próprio corpo teve uma função social histórica: o controle social.
O surgimento tardio da ginecologia como uma especialidade da medicina mostra que até o século XXI a sexualidade feminina havia sido pouco explorada. No início, a ginecologia se resumia a pensar e estudar a mulher como um corpo determinado à reprodução somente.
Com o avanço da sexologia e com o surgimento do movimento feminista no século XX, a mulher passou a ser vista como agente e sujeito de prazer sexual. Métodos contraceptivos foram desenvolvidos e a saúde sexual da mulher passou a ser considerada em diversas esferas médicas e sociais.
“O orgasmo aparece como indicador de bem-estar, tanto para homens como para mulheres, no século XX. A partir daí, também surgem novas categorias de patologias relativas ao sexo, novas pedagogias do corpo, novas subjetividades advindas desta realização do sujeito via sua vivência sexual e, certamente, novas estratégias de normalização da sexualidade e do prazer”, explica a antropóloga e doutoranda em antropologia, com ênfase em corpo e saúde pela UFRGS, Lara Costa Duarte.
Desde então, contudo, a sexualidade feminina e os vários mitos ainda disseminados ajudaram a formar um novo contexto: a medicalização da sexualidade. “As últimas décadas assistiram ao aumento exponencial de terapias, medicamentos, tratamentos, tecnologias e intervenções que se propõem a auxiliar as pessoas a resolverem desordens e dificuldades de cunho sexual que são traduzidas, de modo literal, em questões referentes à qualidade de vida”, pontua a pesquisadora.
“Ao definir marcadores de normalidade bastante rígidos, a medicalização da sexualidade reforçou noções há muito cristalizadas de que a sexualidade feminina se define primordialmente enquanto mero complemento de seu equivalente masculino. Assim, se a sexualidade masculina normal é definida pela capacidade de penetração – e a disfunção sexual masculina é justamente a perda dessa capacidade –, a sexualidade feminina normal também é definida a partir deste modelo de modo que o orgasmo normal ou ideal da mulher precisa decorrer desta atividade”, critica a pesquisadora.
No documentário norte-americano A Indústria do Orgasmo, a diretora Liz Canner investiga a corrida das indústrias farmacêuticas para mudar nossa compreensão sobre o significado de saúde, doença, desejo, sexo e orgasmo. Se aproveitando dessa nova noção do que seria uma normalização da sexualidade e do prazer feminino, Canner apresenta como as indústrias estão distorcendo conceitos de saúde, doença e orgasmo feminino para desenvolver o Viagra para mulheres.
No Brasil, um dado importante sobre a relação da sexualidade feminina com a medicina é o número de cirurgias plásticas íntimas realizadas no país: somos o campeão mundial neste procedimento. Somente em 2014, 15.812 mulheres passaram pelo procedimento. Além de ser o campeão em plásticas de ninfoplastia – a cirurgia da intimidade – o Brasil também realiza as plásticas de clitoroplastia, cirurgia que reduz o volume do clitóris e aumentar a sua área de exposição.
Por oferecer um caminho mais rápido para a solução do que seriam “disfunções” relacionadas à sexualidade, Duarte explica que a medicina tem se colocado como central na vida de muitas mulheres na resolução de problemas que poderiam ser resolvidos, muitas vezes, fora dos consultórios. “Embora a psicologia também tenha um papel importante a desempenhar no que concerne o entendimento da experiência sexual, torna-se muito difícil concorrer com as soluções de efeito imediato que são frequentemente prometidas pela medicina clínica. Tudo isso compõe o cenário a que se chama de ‘medicalização da sexualidade feminina’”.
Segundo a ginecologista Carolina Ambrogini, especialista em saúde feminina e sexualidade, é comum a primeira consulta ao ginecologista ter como motivo a perda da virgindade e a procura por métodos contraceptivos. “Algumas mães trazem as filhas antes disso, quando começam a menstruar e ter muita cólica menstrual, mas no geral vêm quando iniciam a vida sexual”, relata a médica. “As meninas começam a vir com o objetivo de pedir um anticoncepcional, mas não veem para se informar sobre sexualidade, somente para resolver alguma coisa física ou pedir uma receita”.
A ginecologista afirma que sempre aborda a sexualidade nas suas consultas, até nos casos em que as meninas só vêm para pedir um anticoncepcional. “Mas sou especialista em sexualidade, então sei que não é comum um ginecologista, somente, falar sobre isso”. Mesmo sendo um consultório especializado no tema, Ambrogini conta que as meninas e mulheres que atende, na maioria, ainda sentem vergonha de conversar sobre corpo, sexo e orgasmo.
Para investigar como as mulheres lidam com essas questões, a reportagem da Azmina ouviu 16 mulheres entre 22 e 54 anos e de diversas profissões de formação universitária. O principal dado levantado mostrou que a falta de informações sobre sexo, sexualidade e o funcionamento do próprio corpo fez com que várias experiências relacionadas à puberdade fossem motivo de vergonha de si própria para todas as mulheres do grupo entrevistado.
Quando questionadas sobre a primeira vez que ouviram falar de sexo, somente duas mulheres do grupo contaram ter recebido as primeiras informações dentro de casa e ainda na infância: “Eu devia ter entre 6 e 8 anos. Num sábado de manhã, meus pais chamaram eu e meu irmão, deitamos junto com eles na cama e eles nos explicaram como os bebês eram feitos. Meu pai foi desenhando num caderno os órgãos sexuais e mostrou ‘a sementinha’ que saia do papai e entrava no ‘ovinho’ da mamãe e como essa penetração era feita”, relata a fotógrafa Marina. Na adolescência, contudo, o assunto sobre sexo foi se tornando menos presente na família de Marina. “Meus pais tem a cabeça muito aberta e sempre me deram muita liberdade e independência. Mas, curiosamente, sexo até hoje é o único assunto do qual não falamos”.
Sobre as mulheres que receberam informações sobre sexo e sexualidade na escola, com professores, somente seis entrevistadas informaram que o ambiente escolar teve papel importante no ensinamento dessas questões. Vale destacar que essas seis mulheres representavam a faixa etária mais jovem do grupo, com até 32 anos.
A estudante de letras Maria Carolina Lima, 22, conta que recebeu orientações sobre sexo e reprodução dentro de casa, mas o assunto não chegou a se estender para sexualidade. “Minha mãe e minha madrinha começaram a falar comigo sobre prevenção da gravidez quando eu comecei a menstruar, aos 10 anos”, conta. “Na escola, lembro de uma única vez, na sétima série já, em que tivemos aulas sobre sexo, preservativos e menstruação. Mas foi somente essa vez. Agora, algo que nunca ninguém me deu informação, em casa ou na escola, foi sobre masturbação”. Tanto a universitária, como a maioria das mulheres do grupo, citou que, por nunca ter recebido informação sobre masturbação na adolescência, acreditava que o ato era “não natural para meninas”, “algo sujo” e “errado”.
A dificuldade para lidar com o tema da sexualidade se estende também para o consultório médico: 11, das 16 entrevistadas, responderam que a primeira consulta com um ginecologista teve como objetivo iniciar o uso da pílula anticoncepcional; mas 8 mulheres responderam que a relação com o ginecologista atual é distante e sem liberdade para conversar.