O remédio que previne HIV e o que significa ele ter falhado em 3 casos

Em maio de 2017 o SUS (Sistema Único de Saúde) anunciou que disponibilizará para 7.000 pessoas um medicamento que serve como prevenção e diminui significativamente a chance de contaminação por HIV. Patenteada pelo laboratório americano Gilead, a terapia se chama PrEP (profilaxia pré-exposição) e é vendida comercialmente com o nome de Truvada. Ela reúne duas drogas: tenofovir e a emtricitabina. Quem adere precisa tomar uma pílula por dia, todos os dias.

No momento, o público está passando por uma triagem, e a distribuição deve se iniciar no início de dezembro de 2017. A prioridade é para profissionais do sexo e homens que fazem sexo com homens, um grupo que tem uma proporção particularmente alta de pessoas infectadas.

Um estudo envolvendo 12 cidades encomendado pelo Ministério da Saúde e apresentado em setembro no 11º Congresso de HIV/Aids aponta que 18,4% dessa população está infectada no Brasil em 2017, contra uma taxa de 12,1% em 2009. A taxa da população em geral é de 0,4%.

Segundo especialistas consultados pelo Nexo, a camisinha continua sendo a forma de prevenção ideal, e não deve perder esse posto para a PrEP. Eles afirmam que a nova terapia pode, no entanto, atingir e proteger um público que, na prática, não tem aderido aos preservativos, como uma parcela dos homens jovens que fazem sexo com homens, entre os quais o HIV tem se propagado em um ritmo especialmente rápido.

Isso não significa que a PrEP é infalível. É possível ser infectado quando não se toma a pílula com consistência e um artigo publicado em setembro de 2017 na revista The Lancet, dedicada à área médica, lista três casos de infecção mesmo com a adesão correta ao tratamento.

O trabalho foi escrito por pesquisadores do Consórcio para Eliminação da Transmissão de HIV em Amsterdã, que acompanha regularmente diversas pessoas que usam a PrEP.

Quando a PrEP não barrou o HIV

Em dois dos três casos descritos na revista médica, a variante do HIV em questão era um vírus multirresistente a drogas, ou seja, resistente até mesmo à barreira oferecida pela PrEP.

O terceiro caso era inédito e foi descrito pela primeira vez no próprio trabalho publicado em setembro. Ele é diferente dos outros dois porque não foram encontrados vírus especialmente resistentes a drogas.

A pessoa infectada é um homem de 50 anos que faz sexo com homens e que tivera relações sem camisinha com entre 12 e 75 parceiros por mês nos oito meses em que usou PrEP. Frequentemente, era o parceiro receptivo nas relações sexuais. Ele havia sido diagnosticado em diversas ocasiões com doenças sexualmente transmissíveis, como clamídia, gonorreia e linfogranuloma venéreo.

A pesquisa não é conclusiva sobre o que levou à transmissão do HIV, mas levanta a hipótese de que as outras doenças sexualmente transmissíveis e o número especialmente alto de atos sexuais podem ter lesionado a mucosa anal, tornando-a mais vulnerável às infecções, a ponto de sobrepujar o efeito da PrEP.

Como a PrEP deve ser encarada após esses casos

O Nexo conversou com dois infectologistas para colocar em perspectiva esses casos de infecção por HIV mesmo com a adesão correta à PrEP:

Ricardo Vasconcelos é infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Sumire Sakabe é infectologista do Centro de Referência em DST/Aids de São Paulo e do Hospital Nove de Julho

O que esses casos de infecção dizem sobre a eficácia da PrEP?

Ricardo Vasconcelos Nos dois primeiros casos relatados, os vírus eram resistentes ao Truvada, e havia uma plausibilidade biológica para a infecção. Esse tipo de vírus não é tão raro, ele é razoavelmente frequente.

Uma das hipóteses por que tão poucas infecções aconteceram é o fato de que esses vírus resistentes são como “Frankensteins”, eles são mais lentos e têm menos “fitness viral”, ou seja, agilidade e capacidade de causar uma infecção em uma pessoa. A maior parte das infecções acontecem pelos vírus chamados de selvagens, que não são resistentes às drogas, mas são mais ágeis.

Esse terceiro caso [de infecção descrito na The Lancet] é único no sentido de que pela primeira vez um vírus selvagem sensível às drogas presentes no Truvada infectou alguém que tinha aderido ao tratamento corretamente. É a mesma coisa que dizer que alguém que estava usando camisinha sem estourar se infectou.

Eu estava na apresentação deste caso em fevereiro de 2017 em Seattle. O pesquisador holandês que fez a apresentação disse que a pessoa infectada era um paciente que tinha muitas relações sexuais, às vezes com cinco pessoas por dia, e devia haver lesões na mucosa anal, mas essa é uma hipótese.

O contraponto é que se trata de um caso de falha em 150 mil pessoas no mundo usando PrEP. É muito menor do que a falha da camisinha, quando se considera que alguns usam corretamente em todas as relações e outros não.

Sumire Sakabe Temos hoje uma porção de estudos que corroboram o funcionamento da PrEP [os primeiros são de 2010], feitos em um grande número de países com pessoas de diferentes tipos – velhos, jovens, negros, brancos – para que representem a vida real.

Os resultados são muito robustos e mostram que o único subgrupo em que a PrEP não impedia a infecção pelo HIV foi aquele em que as análises de sangue e as entrevistas mostravam que a pessoa não tinha aderido corretamente ao tratamento.

Esse caso do homem que foi infectado por um HIV não multirresistente a drogas, mesmo tendo usado a PrEP, é tão inédito que mereceu uma publicação na Lancet.

Mas ele tinha uma quantidade de parceiros muito muito grande e estava acometido por outras DSTs, que sabemos que contribuem para a infecção por HIV.

O que se supõe é que o vírus entrou pela mucosa anal, um epitélio [tipo de tecido celular] que tem um tropismo [potencial de ser infectado] muito grande do vírus. Se ele estava com esse epitélio inflamado, ele deve ter se exposto a uma carga de vírus muito grande e talvez a concentração de medicamento naquelas células não tenha sido o suficiente para impedir a infecção.

Casos como esse vão se repetir, mas não vão ser a regra. Eu ponho minha mão no fogo de que a PrEP funciona, só que há um risco muito pequeno, como em tudo.

Para quem a PrEP é recomendada?

Ricardo Vasconcelos Nunca ninguém dirá “pare de usar camisinha e começe a usar Truvada”. O que dizemos é: “escolha aquilo que você consegue usar de maneira continuada, correta e constante na vida toda”. Os casos de HIV não estão caindo, e é um erro insistir com alguém que não quer usar camisinha porque se sente incomodado ou acha que tem perda de sensibilidade.

Sempre que vou a uma discussão sobre PrEP tem alguém que levanta a mão e diz que prefere camisinha porque não é um remédio e não tem efeito colateral. Mas temos que reconhecer que tem quem não use camisinha, e oferecer um cardápio para que a pessoa escolha aquilo que ela consegue usar.

Sumire Sakabe Nunca vamos propagandear a PrEP como uma alternativa à camisinha. Quando tentamos proteger uma pessoa, tentamos proteger ela de tudo, e sabemos que a PrEP só funciona para HIV, não para sífilis, hepatites, gonorreia – que está cada vez mais resistente a antibióticos. A camisinha é mais inteligente: se você usa de forma regular, você está muito protegido.

A PrEP veio tapar um buraco porque, apesar de a camisinha ser ótima e ser distribuída de graça, vemos o HIV subindo em certos grupos, como o de meninos que fazem sexo com meninos. Só a camisinha não está funcionando, e precisamos fazer outra coisa. A alternativa que apareceu é a PrEP.

Temos recomendações formais: a PrEP é para profissionais do sexo, inclusive [aquelas que são] transexuais, e homens que fazem sexo com homens e têm diversos parceiros.

É preciso pesar o risco de não tomar o remédio e se infectar, ou de tomar um remédio à toa e bancar os efeitos colaterais. A adesão é de uma pílula por dia, todos os dias, o que não dá problemas no curto prazo. Mas, no longo prazo, pode haver comprometimento da função renal e aceleração da osteoporose.

Esse cálculo sobre se vale a pena tomar a droga vai mudar com o tempo para cada um: hoje um homem pode ser casado e monogâmico, tranquilo, depois ele abre a relação, começa a sair todo dia, tem vários parceiros e não sabe o status sorológico de todo mundo com quem está transando, por exemplo.

Fonte: Nexo