Muitos acontecimentos transformaram a vida da mulher brasileira nos últimos 90 anos; Beatriz Custódio que o diga. Pela idade, ela viveu a conquista do direito ao voto em 1934, a chegada do anticoncepcional em 1960, a sanção da lei do divórcio em 1977, a lei Maria da Penha em 2006 e a lei do feminicídio em 2015 – isso só para citar os mais conhecidos.
Embora reconheça os avanços, ela acha que, em alguns aspectos, são um tanto exagerados. “Era tudo muito familiar, muito puro. Hoje é uma anarquia que a gente nem entende mais nada.”
Essa é a percepção dela sobre a diferença de comportamento entre as mulheres de hoje e da época em que era mais jovem. Essa “liberdade exagerada” dos dias atuais é um ponto em comum às quatro mulheres com quem o a reportagem conversou para este Dia Internacional da Mulher, a mais jovem delas com 67 anos de idade. Ao mesmo tempo, é nessa fase da vida que todas se dizem mais livres para fazer o que quiserem, quando quiserem e com quem quiserem.
Diferente do que se vê na sociedade, principalmente em redes sociais, a experiência dos anos vividos lhes presentearam com sensatez. “A gente não pode criticar, porque são momentos que você vive e você vai procurar viver do jeito que puder. Hoje, eu não tenho nem condições, mas criticar o que nas pessoas?”, emenda Beatriz no auge de seus 89 anos. Ela se considera uma mulher feliz atualmente e a justificativa é simples e saudosa: “tive uma infância saudável”.
Linda Buono também tem lá suas opiniões, mas não critica, porque acha que cada um tem de viver do jeito que quiser. “Esse negócio de mulher com mulher eu fico meio assim, mas aceito porque a vida é delas e eu não tenho nada a ver com isso. É que eu sou velha, a liberdade ficou bem aberta mesmo, não é como antigamente. Estranho, mas não sou contra, a vida é de cada um”, diz e por diversas vezes questiona se suas respostas estão certas.
Para ela, ser mulher nessa fase da vida é “excelente”. Linda só lamenta a perna direita que passou por quatro cirurgias após uma queda, a faz caminhar com dificuldade e a impede de realizar atividades fora de casa. “Sei que sou velha, mas se eu tivesse a perna boa, seria a mesma de quando eu tinha 20 anos. Mas eu me sinto muito bem com meus 84 anos.”
Esse estar bem com a idade não é só percepção delas, está comprovado na pesquisa O Brasil 60+. Para 51,1% das duas mil pessoas entrevistadas, entre homens e mulheres, ter passado dos 60 anos é viver como em qualquer outra idade. Além disso, 30,8% consideram que é nessa fase que estão mais livres para fazer o que quiserem.
“(Ser mulher nessa fase) é uma coisa maravilhosa, porque aos 76 anos você não tem mais a preocupação de ser bonita ou de estar dentro da moda. Eu gosto de estar bem comigo mesma, de estar livre para vestir o que eu gosto, de não seguir o que é ditado”, afirma Sylvette Laniado, uma mulher que, desde os 14 anos morando no Brasil, não perdeu o sotaque característico de quem é estrangeiro – do Egito, no caso dela.
Interessada por assuntos diversos, como finanças, geografia e games (ela faz aulas de programação de jogos, inclusive), Sylvette considera que o direito ao voto foi uma das maiores conquistas das mulheres. “Foi a primeira vez que a mulher não se sentiu objeto, se sentiu um ser humano completo.” Mas outra conquista moderna lhe parece mais vantajosa. “A conquista de quem criou o ‘modess’. Você já imaginou aqueles panos que tínhamos que lavar antigamente? Era horrível”, conta, entre risadas, ao falar sobre o absorvente íntimo descartável que só chegou ao Brasil na década de 1930.
De lá para cá, a liberdade das mulheres alcançou outros âmbitos e no que diz respeito a comportamento, por exemplo, está “muito liberal” hoje em dia, segundo Regina Franco Caporici, de 67 anos. “Antes era uma juventude mais sadia. Hoje eu falo: ‘gente, vocês não viveram nada do que o mundo proporcionou de coisas boas’, mas cada fase é uma fase. Vamos em frente, porque as coisas tendem a mudar mais e eu quero ver mais mudanças.”
Sexualidade após os 60 anos
Sem pudores, essas quatro mulheres falam (quase) abertamente sobre sexo e desejos em uma fase da vida na qual a sociedade vê pessoas dessexualizadas. Conforme pesquisa sobre o perfil dos 60+, sexualidade não é um tabu entre esse público, mas os participantes admitem que tiveram de se reinventar para entender a dinâmica da sociedade atual.
“Não sei se é se reinventar. A gente, como mulher, sabe até onde vai nossa sexualidade e essa coisa de ter 50, 60 anos é a mesma coisa. Quando a pessoa passar (pela fase), vai ver que é a mesma coisa”, diz Regina. “É até mais prazeroso porque você não tem aquelas preocupações que tinha de ‘ah, eu tenho que estar preparada’. A liberdade sexual é tratada, após os 60, com mais carinho, com mais suavidade.”
Sylvette concorda. “A sexualidade continua também aos 76, ela pode ser transformada. Não é mais aquele fogo dos 20, 30 [anos], aquele ímpeto, mas ela toma uma forma mais gostosa. Se você estiver vivendo com uma pessoa durante muito tempo, conhece os gostos do outro. É uma coisa que, entre as duas pessoas, não faz diferença, é importante, faz parte da vida e permanece”, diz.
Demonstrando a liberdade que diz sempre ter tido, ela questiona: “O que impede que eu tenha sexo? Por que não? A gente sente, tem a mesma vontade”. A resposta vem de Linda, um tanto envergonhada e com resquícios de privação. “Até quando meu marido funcionou, não foi tabu, foi tudo normal e bom. Agora depois de velho, vixe Maria… (risos) Mas já sou velha, não preciso mais disso”, afirma e admite que “intimidade existe” com o marido que tem mal de Alzheimer.
Beatriz, cujo marido morreu há dois anos, tende a relembrar o passado quando o assunto é liberdade sexual. Ela é exemplo de como, de fato, os tempos são outros. “Eu fui solteira, conheci meu marido, naquele tempo era vestido branco, grinalda, tudo muito certinho. Acertamos casamento, tudo, sem nada de sexo, nem falar disso falava.”
Em um ponto, todas concordam: depois dos 60 anos, importa muito mais a qualidade do sexo do que a quantidade. “Carinho, afeição e toque”, diz Sylvette. “Mais diálogo e carinho do que o sexo em si. As carícias vêm automaticamente, mas o sexo não é mais prioridade”, afirma Regina.
Feministas?
“Eu prefiro ser feminina”, declara Regina, que diz não saber até que ponto o feminismo é bom ou ruim para as mulheres. Mãe de três homens e avó de um jovem de 15 anos, ela teve o último filho aos 41 anos, com o segundo marido – de quem se separou -, e ignorou as críticas de quem a chamava de “doida” por ser mãe ‘velha’.
No trabalho, comandava uma equipe de 16 homens, sempre foi respeitada e por vezes pegava estrada em caminhão. Viúva do primeiro marido, ela teve de ir à luta para dar uma vida com mais conforto aos filhos.
Nesse quesito, apesar do relato, Sylvete não se considera feminista. “Acho que nunca fui dessas mulheres, que fui feminista, porque eu sempre trabalhei, sempre lutei e tentei conservar dentro de mim também o meu lar particular”. Conforme a conversa seguiu para o preconceito contra as mulheres, ela reconsiderou: “De certa forma, sou feminista, sim, sempre fui à luta pela liberdade, não admito o machismo”.
Beatriz não entende bem o termo, mas conta que desde jovem fazia serviços que muitos homens não faziam. Hoje, acha errado que elas ganhem menos do que eles exercendo a mesma função e considera qualquer serviço apto a uma mulher. “Se a gente consegue fazer, por que não?”
Fonte: Istoé